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quarta-feira, 5 de junho de 2013

Leitura da palavra... leitura do mundo


PAULO FREIRE.
   Em nossos muitos encontros, confrontamos nossas experiências no tocante à alfabetização. As lições que você tirou de suas pesquisas em inocência coincidem frequentemente com minha visão de pedagogo e lançam uma luz original sobre o que chamei de "leitura do mundo". Sempre repeti que é impossível conceber a alfabetização como leitura da palavra sem admitir que ela é necessariamente precedida de uma leitura do mundo. A aprendizagem da leitura e da escrita equivale a uma "releitura" do mundo. É preciso não esquecer essa evidência: as crianças pequenas, bem antes de desenharem e traçarem letras, aprendem a falar, a manipular a linguagem oral. Por intermédio da família, leem a realidade do mundo antes de poderem escrever. Em seguida, apenas escrevem o que já aprenderam a dizer.
   Qualquer processo de alfabetização deve integrar essa realidade histórica e social, utilizá-la metodicamente para incitar os alunos a exercerem, tão sistematicamente quanto possível, sua oralidade, que está infalivelmente ligada ao que chamo de "leitura do mundo". Essa primeira leitura do mundo leva a criança a exprimir, mediante signos e sons, o que ela aprendeu do universo que a cerca.
   A alfabetização exige que se tome essa realidade como ponto de partida. Deve, inclusive, articular- seco mela. Não se deve afastar dessa fonte por preço algum. Pelo contrário, precisa incessantemente voltar a ela, para permitir, graças ao acréscimo de meios de conhecimento proporcionados pela leitura e a escrita, um deciframento mais profundo, uma "releitura" do mundo tal como foi descoberto pela primeira vez. Dependendo da cultura considerada, essa aprendizagem estrutura-se em torno de dois polos de conhecimento: de um lado, o saber "espontâneo"; de outro, o saber "rigoroso", ou científico. Existe, aliás, em cada um de nós, um conflito entre os dois.
   A exigência do rigor jamais é límpida, jamais está livre da ideologia: restam sempre traços de ideologia, mesmo no rigor com que denunciamos nossa própria ideologia...

MARCIO D'OLNE CAMPOS.
   Há muito me interesso pelas relações entre os diferentes tipos de conhecimento: popular, tribal e científico. A propósito do que você chama de "releitura do mundo", o exemplo dos povos indígenas obrigou-me a rever radicalmente minha concepção do papel do educador.
   A inexistência de escrita não impediu que esses grupos humanos - para consignarem sua leitura do mundo, para exprimirem seu contato íntimo com seu meio e com o universo - criassem outros instrumentos de transcrição e transmissão do saber, como os adornos, os ritos, os mitos e uma prática intensa da oralidade. O estreito intercâmbio com o meio ambiente suscita uma primeira leitura, original, que precede -e aliás, permite - a criação de signos e símbolos. A "releitura do mundo" associa-se portanto a um conjunto significante, anterior ao simbolismo do próprio alfabeto. Esse é um ponto capital aplicável a quase todos os casos. Em nossa sociedade brasileira, por exemplo, com frequência se impõem às crianças, pela intimidação, signos arbitrários, não relacionados com sua experiência ou com a representação simbólica que dela fazem. O educador nem sempre está consciente de que existem outros símbolos além daqueles que deseja ensinar. Esse distanciamento é ainda mais marcante quando se trata de alunos provenientes de sociedades indígenas, cujos símbolos originais referem-se a mitos e ritos. Nessa presença no mundo, que é própria de cada um, vejo o ponto de partida obrigatório do processo educativo, a razão de ser da alfabetização. Não se pode pedir a uma criança que, enquanto aprende a ler e a escrever, permaneça isolada como numa redoma de vidro e somente depois comece a ler o mundo!
 

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